Depoimento Beto Colombo
Desde cedo, minha vida está ligada à natureza. Cresci correndo por trilhas no meio do mato, ouvindo o canto dos pássaros, plantando árvores, trabalhando com agricultura. Tínhamos um pedaço do paraíso até a chegada das minas de carvão, que começaram sua destruição – de açudes, de peixes, do próprio Rio Maina, que cheguei a ver vivaz, livre. As mineradoras foram se instalando e aniquilando quase tudo.
Aos sete anos de idade, eu não tinha claramente a consciência do que era ter água pura ao lado de casa. Agora, fazemos represas para captar a água, quase sempre suja, tratá-la e levá-la até nossas casas. Isso não está certo.
No passado, existia uma pressão, quase um consenso – na comunidade, na cidade, no Brasil – de que o preço a pagar pelo progresso era a destruição da natureza, o desmatamento, a morte de rios e peixes. Muita gente vibrava ao ver tratores abrindo estradas, caminhões despejando rejeito de pirita nos rios. Esse crime plural ficou marcado em mim.
Fui crescendo, veio o colégio público, tornei-me técnico em contabilidade e, mais tarde, administrador. Quando fiz Teologia, vi que a própria Bíblia, no primeiro livro de Javé, descrevia a natureza. Pensei: “Como estamos fazendo essa leitura, destruindo o que Javé escreveu?”
Mas as Escrituras tinham esses contrastes – teocentrismo e homocentrismo. Num dado momento, o homem é o “Senhor da Natureza”, veio para crescer e se multiplicar. Em outro, ele deve ser um construtor, o jardineiro do planeta, ao lado de Javé. Era a teologia já discutindo ecologia, criando uma consciência filosófica em mim.
Na tentativa de entender um pouco melhor o mundo, comecei a estudar Filosofia. Ao mesmo tempo, criei uma empresa. Queria ter filhos, manter a família. Depois de abrir meu negócio, fiquei praticamente adormecido por dez anos, não lembro do que fiz, a não ser de trabalhar – e acumular. Pouca coisa fiz por este planeta, quase não pensei nele. Fui morar em apartamento. Morava de frente para a uma bonita praça. Gostava de levantar cedinho, enquanto a cidade ainda acordava, e de ver o dia começando, os primeiros raios de sol refletindo no orvalho das plantas, ouvir os pássaros cantando. E tudo me parecia normal – vida que segue, como se diz. E eu cego. Vou dizer de coração: quem me alertou foi Maria Aparecida, a Isa, uma sábia funcionária da casa. Fui o professor de Bíblia dela. Um dia estava em Jurerê, onde as férias eram fantásticas, a natureza exuberante, o mar, a mata preservada. Um dia, enquanto eu me ocupava no quintal, limpava o jardim, cuidava das nossas orquídeas, ela perguntou porque eu fazia aquilo comigo: “Se gostas tanto da natureza, por que moras em apartamento?”.
Ela tinha razão. Se o que me fazia bem era o contato com a natureza, onde ficava mais alegre, era mais eu mesmo, o que eu estava fazendo comigo mesmo? Nessa consciência filosófica que fomos criando, fizemos um plano, eu e minha esposa. Quando os filhos estivessem formados e eu pudesse deixar a empresa, iríamos morar num sítio. Enquanto isso não acontecia, fizemos na empresa um movimento na direção de produtos ecossustentáveis.
Anos depois, chegou o momento da minha parada. Fizemos um ensaio, na Chácara do Mirante, na Lagoa dos Esteves, Balneário Rincão. Mas, para tais mudanças, conciliações se faziam necessárias na família: medo de mato, medo de escuro, de alguns animais, isolamento, distanciamento. Não parecia um bom lugar para uma mulher criada na cidade. O universo, porém, conspira: nessa mesma época apareceu um sítio, 15 mil m², dentro da cidade, num condomínio. Compramos, não tinha volta. Vendemos quase tudo. Começamos a fazer, juntos, uma lista do que não estava certo em nossas vidas e de como a gente podia fazer melhor. Dentro do apartamento em que ainda vivíamos, começamos a questionar o uso desmedido de água – da banheira, do banho demorado, das tantas descargas do bacio durante o dia. “Para onde vai toda essa água? Isso não pode estar certo!”, questionava-me. Ficava lembrando dos aviões, onde o sistema de banheiros é enxuto, mínimo. Deve existir alguma coisa em relação a casas. A lista foi crescendo, com ideias do que se queria e do que não se desejava. Havia coisas que queríamos agora, mas que ainda não existem. E coisas que tinham a ver com a gente: a luz natural substituindo a luz elétrica, um teto solar, uma entrada de sol, a casa respirando. Questionamos até o uso de sacolas plásticas, as caixas de embalagens, o monte de lixo gerado todos os dias. A compra de adubos para hortas e orquídeas cultivadas, enquanto a gente jogava muita casca fora. E a lista virou um listão. Isso, cinco anos antes da casa.
Agora tínhamos um terreno. E uma lista, que só aumentava: árvore em vaso? Não, tem de estar livre! Pássaros presos, bichos presos, não! Conversei com Diego, ainda trabalhando no escritório de outro arquiteto, Norberto Zaniboni. Queria uma casa que contemplasse aquela lista. E fosse, ao mesmo tempo, uma contribuição para a cidade, como toda boa arquitetura, inovadora. Conversaram com arquitetos famosos de São Paulo, dentro desse conceito, mas eles não tinham muito tempo disponível, por conta dos projetos das Olimpíadas. Foi então que o Diego me questionou: “Se já sabes o que queres, por que não fazemos juntos esse projeto?”.
Depois de uma visita ao terreno, que tinha uma casa em cima, os arquitetos ficaram diante de um dilema: como transformá-la em uma casa ecológica? Isso porque a posição não era ideal para a insolação, nem para aproveitar os ventos. A ideia era testar tudo, do projeto às instalações e inovações. Diego assumiu o projeto e trouxe uma pessoa que fazia simulações de luz, de ventilação, e eu disse que a casa tinha que respirar, não devia depender de luz artificial, nem de ventilação que não fosse natural. Queria uma casa com cheiros, com memórias. Os filhos têm que sentir isso, os netos têm que sentir isso, feito casa de avós mesmo. Andamos no terreno, percebemos o entorno, cada canto dele. Dali em diante, começou a nascer a casa. Bastou um croqui e a casa começou a conversar conosco. Um belo diálogo.
“Gosto muito dessa linha reta, horizontal. Acalma. Dá chão.”
As coisas criam coisas, pensei. Uma maquete ajudou a ver a casa no terreno, nós dentro da casa, as vistas desejadas. Poderíamos criar um janelão aqui, aproveitar a laje superior para viver ao luar. Mas o concreto aquece muito – vamos refrescar o teto com plantas, água, peixes, o tal telhado verde? Foram surgindo as ideias. A casa foi dizendo o que devíamos fazer. O orquidário que estava fora da casa foi trazido para dentro – e com ele o perfume natural de todos os dias. A casa nos foi conduzindo. Plantamos um jardim, apareceu um beija-flor, as borboletas. Fomos semeando as flores que as borboletas gostam, as cores que as atraem, num processo que dura até hoje: a casa continua viva, continua falando conosco.
“É triste pensar que a natureza fala e que o gênero humano não a ouve.”
Victor Hugo
Hoje, como filósofo clínico, deixei de atender no centro da cidade. A biblioteca ganhou também esse papel – além de receber meus livros, meus estudos e muito mais, na bagunça que precisa ser. Meu porto seguro é ali, entre obras de pensadores do ontem e do hoje.
Prefiro deixar as coisas acontecendo. Terapias são feitas com vista para o jardim. O mundo coube todo dentro da casa. Ou seja, se tiver que deixar alguma coisa – coisas não, ideias – para netos e bisnetos, fazer algo que vai durar muito, trazendo vida, sem agredir o meio ambiente, talvez seja essa casa.
“A chamada Casa 01 é o meu santuário, hoje. Onde me aquieto. Recebo muita gente, filhos, netos, amigos, um bom vinho, uma boa conversa, não preciso sair daqui.”
Beto Colombo
As escolhas certas
E veio a questão: que materiais são sustentáveis? Quais têm o sonhado Selo Verde? De onde vem esse material, como é retirado, como é produzido? Ainda é muito difícil obter essas informações no país, onde a sustentabilidade muitas vezes não passa de uma jogada de marketing. A dificuldade nos fez ir atrás de especialistas como Alexandre Gobbo, para a escolha correta e saudável dos materiais. A iluminação ficou por conta da arquiteta Amanda Pamato. Muita pesquisa e experimentação resultou em grandes descobertas. Uma equipe de buscadores. Vânia Búrigo deu um banho de harmonia em toda parte interna. Aprendemos muito juntos. Benedito Abbud fez uma participação fantástica na parte externa, mais um que abraçou a ideia, trazendo o conceito de cheios e vazios do paisagismo natural. Uma equipe engajada numa causa. Aqui, cultivamos nossas frutas, nossas hortaliças, nossas verduras, os temperos e seus cheiros e sabores. Fazemos o nosso adubo e geramos o mínimo possível de lixo. Uma ideia antiga: o lixo que entrar é problema nosso. E precisava de solução. Reciclamos tudo aqui, do papelão às cascas. E assim foi também durante a construção. Mauro Sônego e seu fiel escudeiro, Rone, sempre dispostos a mudar, alterar e questionar. Éramos responsáveis pelo lixo, pelos resíduos de cimento, tijolos, pisos. Tudo foi moído e virou matéria-prima para a calçada. O plástico foi enviado para uma recicladora e se transformou em piso para os caminhos.
Mas queríamos ir além. Como contribuir para reduzir a poluição dos automóveis? Descobrimos na Itália que o dióxido de titânio, misturado ao concreto, era capaz de resgatar o CO2 da atmosfera, feito uma árvore. Após uma série de ensaios com o acompanhamento de engenheiros químicos e dos cientistas das empresas de concreto, analisando possibilidades e avaliando garantias, chegou-se a uma fórmula na qual o titânio não comprometeria a liga, sendo incorporado à massa do concreto aparente. Quase todo monóxido de carbono gerado no condomínio é filtrado pela fachada da casa. E já estamos pensando em carros elétricos, brevemente na nossa garagem. A casa está preparada para recebê-los. A geração da energia vem de placas fotovoltaicas, o melhor caminho encontrado. A casa é autossuficiente em energia; pagamos somente as taxas. A chuva que cai na casa é filtrada pela terra do jardim da cobertura, vai para um reservatório, volta e irriga as mesmas plantas do jardim superior. A grama cortada vira adubo.
E continua o trabalho de equipe: quem cuida da casa participa, quem cuida do jardim, também. Ensinar o que antes não se sabia. Como fazer um jardim. Como tratar sem venenos, cuidar sem desperdícios. Cada um que entra como fornecedor tem que entender a lógica – ou mágica? – da casa. Sai mais caro, porque se produz pouco – ou porque fabricar errado é mais fácil e barato. Tudo tem seu preço, mas também seu valor.
Quem faz janelas de bambu? Conhecemos o sobrinho do arquiteto Lúcio Costa, que trabalha com essas coisas no interior de São Paulo. Garimpo. Prospecção. Se procurar, tem. Ao se criar o clima, deixar clara a demanda, acham-se pessoas interessadas e interessantes. Os arquitetos que se envolveram, colocaram o coração no projeto. Pesquisas, viagens, experimentações. Viu-se que algumas coisas não funcionam. A casa mostra o que não está legal. E o que está legal. Os animais silvestres passeando pelo jardim, entrando na casa. A vida refletida na Lagoa Dourada, em frente à casa – que dá nome ao condomínio e cujas águas espelham os raios do sol poente e servem de pouso para aves migratórias. Ciclos.
“Desacelerei muito. É bom estar aqui”.
“Parece que estou sempre de férias.”
Beto Colombo
Foi um trabalho sem pressa, muito além do imaginado. A lista, ao final, foi contemplada. E o mais importante: minha companheira Albany está adorando. “Se achou” na casa, perdeu os medos. Os filhos se sentem em casa. Os netos têm seu espaço. E crescem aprendendo o real valor da vida. Tudo fica integrado, dentro e fora, não há limites. Estamos mais contemplativos, vivendo a vida como ela é.
“Para se saber da casa, há de se andar por ela.”
Um hall, um corredor, os jardins internos, os narizes da casa – dois na parte social e outros nos quartos: a casa respira. No verão é fresco, no inverno é quente. Tem-se vista de um ambiente para outro. A casa está integrada visualmente, todos os ambientes, exceto quartos. Uma casa como tem de ser, onde não se tenha a exata certeza de que se está dentro ou se está fora. Peças de arte remetem para o que é feito à mão, peças únicas, algumas representações de momentos vividos, outras trazidas de viagens.
Uma sala ampla para conversar, bem receber. Outra para ver filmes ou fazer pequenas apresentações em família. Conviver.
Adega quase sempre com temperatura ambiente. Pedras nas paredes, tijolos no chão. Para que mais? Uma mesa pequena para poucos amigos, duas mesas grandes para receber o quanto dá – uma delas debaixo do pergolado do orquidário.
Na cozinha aberta para a casa, sob a iluminação natural, uma ampla bancada com vista para a horta e uma ilha central, de onde se vislumbra toda a paisagem. Tudo a poucos passos da pequena mesa de refeições, da ampla mesa de jantar, da mesa rústica do pergolado, do acesso à adega.
Lá fora, fogo, terra, água e ar no terraço frontal: a piscina para dias quentes, o fogo de chão para noites frias. Balanços para recordar da infância, peças feitas pelo avô e pelos netos para lembrar quem fomos e quem somos. Tudo convivendo no mesmo espaço.
Quartos para cada um. Um ateliê de trabalhos manuais que vira quarto de crianças, tudo com vista para o jardim. Uma pequena floresta fazendo a acústica, domando os sons vindos da estrada. Na suíte do casal, luz natural e piso de seixos para fazer do banho um sensação de paz. No jardim, caminho sensorial, pisos aguçando os sentidos, caminhos perceptíveis. A horta, desenhada em trisquel, uma figura de origem celta, parece nos colocar de volta no caminho sagrado de Santiago de Compostela. Lembranças, aromas e sabores se misturam. Para todos os lados, cores e revestimentos atemporais que trazem simplicidade de escolhas, continuidade e amplitude.
Para o terraço superior, o acesso pela escada de aço Corten – respeitando sua natureza, em que a ferrugem faz parte da vida – traz a surpresa da vista ampliada, transportando nosso olhar até a Serra Geral. Lugar de convivência, contemplação, bem-estar. Caminho de seixos sob a água, plantas com nomes para reconhecer, andorinhas fazendo ninhos, joões-de-barro criando filhotes, espaços para vivenciar todas as estações. Dali, contempla-se amplamente o jardim, de onde não foi tirada nenhuma árvore, a não ser as invasoras. Salvaram um pé. O que não é para ser, não será.
“João-de-Barro fez casa, vendaval levou – casa e filhote. Refizeram suas vidas, sem anunciarem, sem redes sociais, sem maiores lamentos. É vida que segue. Resiliência. Lição.”